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14/01/19
A vida fora do celular
O celular é ferramenta fantástica e as redes sociais muito boas para manter contato. Mas quando voce passa a viver só em função delas, como pencas de gente que conheço, passa a desperdiçar a vida, a não ver ela passar.
Quando um grupo de amigos se reúne, o grande prazer é jogar conversa fora, trocar ideias, gozações e futricas, mas tem gente que só consegue fazer isso pelo WhatsApp. Observe as mesas num bar e verá que em muitas estão todos olhando o celular e ninguém conversando.
Nas festas de Natal e aniversários é a mesma coisa. Cada um está “conversando” com alguém pela rede social e ninguém está se falando, mesmo um ao lado do outro. As pessoas pensam que estão “socializado” quando na verdade se isolam cada vez mais.
Tem gente que fica teclando no cinema, por mais absurdo que pareça. Era melhor não ter ido. Um exemplo perfeito de desperdício da vida por causa do celular são as viagens.
Ele é muito útil para buscar informações sobre o local, usar mapas e GPS, traduzir placas e até conversar em outra língua em tempo real usando o Google Tradutor.
Mas se torna um prejuízo se a pessoa passar o tempo todo teclando com amigos pelo WhatsApp ou postando fotos no Instagram ao invés de mergulhar na cultura local. Na volta, só vai lembrar dos lugares se olhar as fotos que tirou, porque em sua memória será como se nunca estivesse lá.
Se for viajar assim, melhor ficar em casa e visitar as cidades pelo Street View. O resultado será parecido. Voce terá todas as informações visuais sem nenhuma sensação, sem nenhuma ligação pessoal com nada, sem saber como cheira e soa o lugar.
Para que ir a Paris e ficar olhando o celular? Voce não vai ouvir os sons da capital. Nem as conversas na rua, os vendedores haitianos de guarda-chuvas. Não vai sentir o cheiro das flores, dos cafés, dos croissants e do pão quente nas padarias, das castanhas cozidas.
Voce não vai sentir o contraste do frio da rua com o calor dos prédios, não vai sentir a atmosfera de um típico café parisiense, curtir as margens do rio Sena, ver os mais velhos jogando bocha num cantinho de rua. Voce não vai saber o que é jantar no Champs Elysee.
Uma viagem, para ser marcante, precisa ser imersiva, para que voce mergulhe na cultura, costumes, culinária, paisagens, sons, cheiros e cores da cidade. Fotos e videos só têm uma dimensão, selfies não incluem sensações. É preciso viver a viagem.
Apesar de ser apaixonado por fotografia, passei por muitos lugares sem tirar um foto sequer, porque estava ocupado vivendo a experiência. Foi assim em Stein-am-Rhein, por exemplo.
Cheguei nesta pequena cidade medieval da suíça de trem, por volta das 6 horas, num dia bem frio. As ruas estavam cobertas com um “lençol” de neblina e totalmente silenciosa. Ao passar pela entrada, ouvi ao longe um grupo tocando música de coreto. No rio Reno, logo abaixo, um senhor pescava num barquinho colorido.
Perto de uma praça senti o cheiro gostoso de café e parei para beber um na varanda de um restaurante. Aos poucos a cidade foi acordando.
Vi passar crianças indo para a escola em fila, em ordem, sem nenhum adulto por perto. Lá não precisa. Vi moradores indo para o trabalho, vi uma senhora varrendo a calçada.
O som da música do coreto se misturava com as conversas, os primeiros carros.
Com sons de pássaros, um gato marrom que morava no restaurante miando, risos. O sol começou a aparecer baixinho, iluminando as casas de uma maneira especial, enquanto a neblina ia sumindo.
Um vento fraco e frio batia no rosto, em contraste com cada gole do cappuccino que eu estava bebendo. Entre um gole e outro, me divertia soprando “fumaça”. Todas as pessoas que passavam me davam bom dia e sorriam. Eu podia me dedicar a filmar ou fotografar.
Mas nenhuma foto, nenhum vídeo, consegue te dar essa experiência, que se torna parte de voce por ter sido vivida, e não fotografada.
Fotos são deletadas, perdidas. Memórias, nunca.
A não ser que voce tenha Alzheimer, claro...