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13/06/22
35 anos não são 35 minutos
No começo era o verbo. E o substantivo. E a ousadia de usar os adjetivos.
Há 35 anos, em 19 de abril de 1987, nascia um jornal disposto a revolucionar a maneira como a imprensa era feita no sul da Bahia. Nascia com conceito inédito de ser independente, de nunca receber dinheiro para mudar uma matéria ou disfarçar a realidade.
Um jornal com duas características únicas no interior da Bahia: a coragem de enfrentar gente poderosa em nome de uma população sem voz, e uma alma investigativa que causou inúmeros terremotos em terras grapiunas, derrubando mitos e rachando muralhas.
Era a primeira fase de quatro, como enxergo essa história incrível.
A primeira trouxe as inovações no formato, com um layout moderno e inovações como acabar com o lide e ligar os títulos diretamente ao texto, além de um espaço mais generoso para as fotos. No texto, a união da qualidade acadêmica de Hélio Pólvora com o isqueiro aceso do destemor de Manoel Leal.
As reportagens tinham uma qualidade de capital, embaladas por um time que tinha gente como Daniel Thame e Vilma Medina, mais o fotógrado Sabino Primitivo, além dos textos de Hélio, ex-editorialista do Jornal do Brasil. O jornal foi um sucesso imediato, influenciando o jornalismo dos outros veículos do sul da Bahia.
Nesta primeira fase, em dois meses o único concorrente de A Região era o forte A Tarde, de Salvador, em boa parte graças à sua sucursal de Itabuna e ao Caderno dos Municípios. AR ganhava na maioria dos públicos, mas perdia no de ensino superior e entre os mais velhos.
Isso mudou quando tentaram, inutilmente, transformar o A Tarde num jornal nacional, diminuindo a quase nada o espaço para assuntos do interior baiano, trocados pelos nacionais que inúmeras outras fontes já supriam. O sumiço de A Tarde no interior levou à segunda fase.
Nesta, A Região reinava tão sozinho que chegava a incomodar. Tinha mais leitores que todos os outros jornais somados, os daqui e os de fora. A falta de concorrência obrigava a equipe a se policiar para não cair na preguiça. Para o leitor, nada mudou. A Região chegava todo sábado para tremer o chão.
Foram os melhores anos do jornal, incluindo sua entrada na internet em 1996, segundo jornal do estado a ter um website, atrás apenas de A Tarde, por poucas semanas. Naquela época, o site trazia apenas as manchetes e os artigos assinados. Isso mudou na terceira fase.
Esta é que mais mudanças promoveu no jornal e a mais sofrida. Não estou falando aqui da perseguição dos políticos corruptos que AR denunciava, do bloqueio de anúncios de prefeituras e do estado ou da pressão para que empresas não anunciassem nele.
O sofrimento foi gestado numa matéria espetacular, revelando o pagamento de propina por parte do então prefeito, Fernando Gomes, ao delegado Gilson Prata, de Salvador, para perseguir integrantes do governo anterior, humilhando-os com prisões no meio da rua e exposição com algemas.
A matéria acabou com a chance de Prata ser o novo secretário de Segurança, cargo que estava garantido até então. Prejudicou imensamente os planos do prefeito, já muito estressado por anos de denúncias de A Região sobre sua gestão. A matéria saiu no meio de dezembro de 1996.
Um mês depois, no dia 14 de janeiro de 1997, o fundador e alma do jornal, Manoel Leal, era assassinado numa emboscada montada por três homens. Um deles era Monzar Brasil, policial da equipe de Prata que fora denunciado com ele pelo jornal.
Outro Marcone Sarmento, funcionário de Maria Alice Araújo, por sua vez braço direito e esquerdo do prefeito Fernando Gomes. Depois de muitos anos e uma luta gigantesca junto a entidades nacionais e internacionais, os dois foram condenados. Até hoje não se investigou quem foram os mandantes, apesar de óbvios.
O assassinato de meu pai levou o jornal para a terceira fase, a de sobreviver sem ele, sem sua alma. Muita gente me aconselhou a fechar, até para não arriscar minha vida. Sabotado pelos políticos, o jornal também não tinha como se sustentar sozinho, outra razão para encerrar sua história aos 10 anos.
Mas como fechar e dar aos mandantes a vitória final? Nem pensar. Eu e a equipe, Daniel Thame à frente, depois Luiz Conceição, passamos a fazer de tudo para manter o jornal vivo. Ele foi fundamental na luta para levar os assassinos a juri, para obrigar o estado a reconhecer sua responsabilidade.
Nesta fase, A Região criou inovações que só muito depois seriam adotadas por jornais ao redor do mundo, como o trabalho remoto, através da internet, entre repórteres, editores, diagramadores e impressores, que passamos a ter como padrão em 2000.
Outra inovação foi fazer textos de qualidade, porém mais objetivos, enxutos, em linguagem direta e curtos, acompanhando o que prevíamos que seria o padrão online, com leitores sem paciencia para textos longos e complexos, apressados pela tecnologia. Também aumentamos o tamanho das letras, visando os mais velhos.
Ainda pensando na internet e seu papel na história dos jornais, antecipamos em mais de 10 anos o que os outros fariam mais tarde, mantendo uma edição impressa com o resumo da semana e matérias mais analíticas, enquanto a versão online é atualizada diariamente.
Nesta fase conseguimos fazer história na Copa do Mundo no Brasil, publicando num jornal de interior as colunas dos maiores articulistas de futebol do país: Juca Kfoury, PVC e Tostão, além de matérias especiais sobre o torneio e os torcedores locais.
Conseguimos ainda uma das colunas de política nacional mais respeitadas e influentes, a do jornalista de Brasília Cláudio Humberto. Mais tarde, na fase seguinte, também trouxemos a de Carlos Brickmann, outra lenda viva do jornalismo brasileiro.
E veio a quarta e atual fase.
Como não poderia deixar de ser, perseguido financeiramente, aos poucos A Região teve que abrir mão de seus jornalistas, cortar despesas e enxugar os custos. Se por um lado A Região se tornou a maior referência de notícias do sul da Bahia na internet, por outro passou a ter dificuldades para sair impresso.
Tudo ficou pior com a "pandemia Dilma", causadora da maior recessão da história do Brasil, mas continuamos lutando. Quando as coisas começavam a melhorar, ao longo de 2019, chega a pandemia da Covid e as medidas absurdas tomadas pelo governador Rui Costa e os prefeitos.
Hoje, A Região continua fazendo o melhor jornalismo possível, talvez o único de forma independente, sem rabo preso com ninguém - apenas com o leitor. A edição impressa continua, mas não mantém mais a regularidade de sair todo sábado. Às vezes, temos que pular...
Na internet, A Região continua crescendo todos os dias, ganhando leitores fieis em mais de 50 países e todos os estados. É a principal referência de notícias do sul da Bahia mas, nos últimos anos, empurrado por seus leitores, ampliou o noticiário sobre o resto da Bahia e a cena nacional, aumentando seus leitores fora daqui.
O diferencial continua sendo a qualidade dos textos, a independência, o desprezo por press-releases de badalação sem conteúdo, a resiliência diante das dificuldades, a coragem para futucar feridas abertas, a defesa da população diante dos poderosos.
Na parte editorial, o diferencial é a Malha Fina, que continua jogando ácido em quem merece, com participação espírita de meu pai que, não tenho dúvida, inspira boa parte das notas. Algumas só podem ter vindo dele...